terça-feira, 27 de abril de 2010

Morfeu.

- Doutor Rafael?
- Pois não?
- Há uma pessoa aqui que gostaria de falar com o senhor pessoalmente.
- Mas, quem seria? Não foi marcado nada previamente, você bem sabe das minhas regras, Maria.
- Não é um cliente, doutor...
- E quem mais seria?
Três batidas firmes na porta o assustaram, ainda concentrado no telefonema. E posteriormente, ouviu-se o ranger da maçaneta.
Cinco segundos. O bastante para revirar suas últimas negociações, alguma dívida pendente ou algo do passado que viesse a lhe atormentar.
No sexto, a figura apresentou-se.
- Bom dia, doutor. Desculpe-me a audácia, trata-se de algo urgente.
- E poderia ao menos apresentar-se?
- Morfeu.
O médico duvidou da sanidade daquele ser vestido em terno marrom desbotado, com a gola da blusa levemente levantada. A pasta de couro que carregava
apresentada sinais de que fora castigada pelo tempo - tempo demais.
- Meu senhor, eu terei de chamar os seguranças. Se isso é algum tipo de pegadinha ou quem sabe um...
Vendas prestas sobre seus olhos, escuridão. Sempre fora fã da mesma, nunca deixava uma fresta se quer de claridade pronunciar-se na solidão e no
silêncio de seu quarto escuro. Isso seria inadmissível.
Mas aquele escuro era perturbador, tateava o ar, a procura de algo. Parecia uma criança ávida por capturar uma borboleta, que por sua vez, almejava mais do que o moleque, a sua própria liberdade.
Estava tonto, confuso e sentia cheiro de mofo e urina misturados. O estômago vazio reclamou dessa combinação aromática. Tateou com desespero seus olhos, a procura da tal venda, como desatá-la. Mas, para sua surpresa, nada havia.
Levantou-se, a cabeça parecia pesar mais do que poderia suportar em condições normais, quanto mais nas condições em que se encontrava.
Sentou-se sobre a cama e estabilizou-se. Arrastou-se até o meio do quarto, o piso de tábua corrida rangia a medida que seus pés se movimentavam,
quase que involuntáriamente. Tateou tudo quanto lhe havia pela frente: o nada. Desesperado, passou a ouvir passos ao longe, com a aproximação,
percebeu que se enganara. Não eram passos, era um trote. Cada vez mais próximo ao local - seja qual for - no qual estava.
Sentiu uma brisa quente passar por sua nuca e depois, uma mão em seu ombro. Mas nada havia, nada havia.
Bufadas vindas de longe, de não tão longe, de próximo, de perto, ao lado. Caiu, repentinamente, de costas.
Abriu os olhos e na cabeceira uma esfera, com barbantes embaralhados simétricamente, sementes e penas nas laterais e na base da circunferência.
Um pegador de sonhos.

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